"Julgamos que faça parte de um espírito civilizado em nossa época ter travado contato com a forma de pensamento crítico peculiarmente moderno e oportuno e que chamamos sociologia. Mesmo aqueles que não encontram nessa atividade intelectual seu próprio demônio particular, como se expressou Weber, tornar-se-ão, através desse contato, um pouco menos obstinados em seus preconceitos, um pouco mais cuidadosos em seus comprometimentos e um pouco céticos em relação aos comprometimentos alheios – e talvez um pouco mais compassivos em suas jornadas através da sociedade”.(Peter Berger, Perspectivas Sociológicas: uma visão humanística) ·.

“Na entrada para a ciência como na entrada do inferno, é preciso impor a exigência: ‘Que aqui se afaste toda suspeita, que neste lugar se despreze todo medo (Dante Alighieri)’(Marx- Prefácio da Contribuição para a Crítica da Economia Política)

domingo, 18 de julho de 2010

As tentações imperiais da França

A incapacidade do Estado Francês em desenvolver uma política eficiente que integre os imigrantes está fortemente baseada no desejo de promover a homogeneidade numa nação “única e indivisível”, que na verdade é impossível de se realizar, a não ser que Sarkozy assuma de vez o seu desejo de restaurar o velho e detestável Império francês. As identidades dentro das nações são instáveis e é muito difícil uma comunidade cultural coincidir com uma entidade política, tornando impossível buscar a realização daquilo que se chama “França autêntica”. .
Em meio à crise política (corrupção e financiamento de campanha eleitoral) que atinge o seu governo, o presidente da França, Nicolas Sarkozy, considerou uma vitória importante no Parlamento a aprovação, por 335 votos a favor e um contra, a lei que proíbe o uso do niqab e da burca pelas mulheres muçulmanas. Por que uma questão privada que afeta poucas pessoas na França ressurge como um foco de atenção exagerada? Por que religião e etnia saíram da esfera pessoal e tornaram-se públicas? O fato é que se estabeleceu na França um forte vínculo entre identidade e migração.
As polêmicas sobre o tema da identidade nacional são, antes de tudo, o medo do "outro", do não europeu. Os islâmicos são percebidos cada vez mais por europeus "brancos" não apenas como uma ameaça aos seus empregos, mas, sobretudo, uma ameaça ao “estilo de vida europeu”.
Diferentemente da campanha presidencial em 2005, em que os temas principais eram o desemprego e questões sociais, em 2007, o líder da extrema direita Jean-Marie Le Pen, pode assistir com satisfação a questão da “identidade nacional” assumir o primeiro plano nos debates entre os candidatos. Alguns chegam a especular que as razões da catastrófica atuação da equipe francesa, dentro e fora de campo na África do Sul, refletem as profundas transformações da sociedade francesa. Pois, se em 1998 a França pode celebrar orgulhosa a imagem de Zidane (capitão francês de origem argelina) erguendo a taça de campeão do mundo, revelando a integração de uma nação multi-etnica; no início desse ano, a equipe francesa foi vaiada por uma grande parte da torcida, de filhos ou netos de argelinos, quando jogava uma partida de futebol contra Argélia em Paris.
Apesar desse debate sobre crise da identidade nacional francesa ser indicativo de uma conjunção de fatores que atinge toda a Europa (globalização, crise financeira, desemprego, a ascensão da Ásia, etc), e que tende a se intensificar à medida que se perde a confiança em sua capacidade de superar os desafios, no caso da França a frustração tem levado a uma nostalgia do passado.
Pela primeira vez na história, soldados de 13 países africanos que pertenceram ao antigo império colonial francês marcharam na avenida Champs-Elysees, à frente das tropas francesas nas comemorações do Dia da Bastilha em Paris. Várias organizações da sociedade civil francesa protestaram contra as violações dos direitos humanos por alguns dos líderes africanos que estavam presente e acusaram Sarkozy de nostalgia colonial. Na ocasião Sarkozy anunciou aumento das pensões dos veteranos africanos para o mesmo nível que as dos franceses para corrigir uma injustiça. (os combatentes da 2ª Guerra Mundial estão agora com idades que variam entre 84 e 95 anos).
O tema reapareceu recentemente em mais um polêmico filme sobre a guerra pela independência da Argélia, "Hors la Loi" (Fora da Lei), sob protestos de manifestantes, em Cannes, portando bandeiras da França, dizendo que o filme macula a memória do Exército francês. O diretor é o mesmo do excepcional filme "Dias de Glória" de 2006. Ambos os filmes abordam a história dos soldados das colônias Francesas na África que combateram pela França na 2ª Guerra Mundial. Os britânicos e franceses aliciaram milhares de soldados das colônias com a promessa da futura independência dos seus países. Quando teve início a guerra, em 1939, o governo francês recrutou cerca de 500.000 africanos e De Gaulle recrutou mais 100.000 em 1943 para libertar a França.
No momento da celebração da vitória dos aliados os soldados africanos foram escondidos em lugares que pareciam verdadeiros campos de refugiados, pois De Gaulle queria uma celebração “mais branca”. Aqueles que ousaram tremular a bandeira da Argélia entre as bandeiras dos EUA, Inglaterra e França foram massacrados.
Os franceses criaram um mito e querem que acreditemos que ele existe como se fosse uma realidade: o Estado-Nação. Uma maioria acreditava que esse era o melhor caminho para consolidar e legitimar o governo sobre uma população que se caracteriza por uma língua comum ou por seu caráter étnico. O problema é que as identidades dentro das nações são instáveis e é muito difícil uma comunidade cultural coincidir com uma entidade política, tornando impossível buscar a realização daquilo que se chama “França autêntica”. A incapacidade do Estado Francês em desenvolver uma política eficiente que integre os imigrantes está fortemente baseada no desejo de promover a homogeneidade numa nação “única e indivisível”, que na verdade é impossível de se realizar, a não ser que Sarkozy assuma de vez o seu desejo de restaurar o velho e detestável Império francês.

Reginaldo Nasser -  Professor de Relações Internacionais da PUC-SP

sexta-feira, 16 de julho de 2010

Filho da... professora - Autora: Mariana Cruz

http://www.educacaopublica.rj.gov.br/biblioteca/comportamento/0048.html
Como escrevi aqui algumas semanas atrás (no texto Globalização dos idiomas), desisti de ficar irritada com a indiscrição das pessoas que utilizam o celular nos espaços públicos; ao contrário, as narrativas da vida alheia passaram a ser um ótimo passatempo nas minhas viagens de ônibus. É a síndrome do big brother auditiva. Poucas vezes, porém, o ditado “é melhor escutar isso do que ser surdo” caiu tão bem como em relação à conversa que escutei semana passada. No começo até simpatizei com a moça. Pela voz, pelo vocabulário e pelo tipo de papo, ela devia ter cerca de 30 anos. Conversava com uma amiga, a quem agradecia o apoio naquele momento tão difícil de sua vida, dizia que ela era seu “anjo da guarda”.
Até então, eu estava achando o reconhecimento e valorização de uma amizade entre mulheres algo bonito de se ver, digo, de se ouvir, uma vez que as más línguas teimam em dizer que isso não existe. Balela. A única coisa que me incomodou era seu criativo hábito de chamar a amiga de... amiga. Nada contra quem faz isso, eu inclusive; o problema era a constância com que repetia o termo, e o pior é que sempre vinha antecedido de um “ai”. Assim, a cada cinco palavras ela soltava um “ai, amiga”. Parecia até jargão de programa humorístico. Foi então que começou a catarse (razão provável de ela atribuir à sua “amiga” o título metafísico supracitado). A moça estava bem chateada porque o namorado havia terminado com ela. Quem é que não fica chateado por tomar um pé? Para se sentir melhor, ela começou com aquela exaltação dos defeitos do ex.
É normal querermos diminuir alguém que nos magoou. Somos humanos. Mas até para falar mal de alguém é preciso ter classe. Há formas e formas de se convencer de que uma separação definida pelo outro foi “a-melhor-coisa-que-me-aconteceu” sem, no entanto, apelar. E foi justamente o que ela não fez. Assim que começou a falar com seu “anjo da guarda” sobre o término, foi dizendo que o que impressionava a ela era o fato de o rapaz não se tocar da besteira que tinha feito, de não perceber que ela era “muita, mas muita areia pro caminhãozinho dele”.
Aí eu já comecei a não ficar mais tão solidária com a mocinha abandonada. Acho meio esquisito esse lance de alguém se achar muita areia pro caminhão de alguém. Uma superioridade atestada por quem? Quais os critérios hierárquicos? Onde está a tábua de valores que cataloga certas pessoas como melhores ou piores que outras? Nessa hora fiquei com vontade de virar-me só para ver a pinta daquela imensa duna em forma de mulher. Mas me contive. De repente foi só um deslize provocado pela dor de cotovelo. Eis que ela começou a tecer um rosário de motivos que mostravam sua superioridade perante aquele “caminhãozinho”: “ele não tem berço”, disparou.
Achei que eu estava ouvindo uma sinhazinha da época do Brasil Colônia apresentando os motivos que a impediriam de casar-se com um dos escravos do engenho de seu pai. De volta ao século XXI: o que significa não ter berço? Ela continuou: “ele tem uma autoestima baixa”. Tal motivo até pode ser compreensível para o término de uma relação, o problema é que quem terminou com ela foi ele, e não ao contrário. Ela então justificou a falta de autoestima de seu ex-namorado: “ele vai malhar até quando está doente, gripado”. Não entendi a relação: isso mostra que o cara gosta de malhar, não liga para gripe, não se abate pelo cansaço do corpo – mas não que sua autoestima seja baixa.
Eu estava começando a achar que o fulano tinha lá seus motivos de ter rompido o namoro. Principalmente quando ela saiu com a pérola: “o cara, ainda por cima, é suburbano”. Agora eu tinha certeza de que o rapaz tinha se livrado de uma boa. Como pode uma pessoa sentir-se muita areia para o caminhãozinho de alguém pelo fato de morarem em zonas diferentes da mesma cidade? Ela o considera inferior pelo fato de não ter berço (seja lá o que isso queira significar) e ser suburbano.
Não satisfeita, a garota-zona-sul soltou o último insulto dirigido ao suburbian boy, justamente o que me motivou a escrever este texto. Conto alguns detalhes para melhor contextualizar a cena. Ela contou que, ao relatar para o pai o “fora” que levara, ele começou a tecer as impressões que tinha do ex-futuro genro; sem saber a profissão da mãe do rapaz, quase acertou: um rapaz com aquele perfil (deveria estar se referindo ao fato de ser suburbano e sem berço), e sendo filho de pai militar, devia ser filho de professora de história. Tal julgamento do pai serviu para fortalecer em mim aquela máxima de que “quem sai aos seus não degenera”, isto é, tal pai, tal filha.
Foi quando a moça soltou sua primeira gargalhada, para em seguida elogiar seu pai: “ele é fogo, sabe tudo, quase acertou: a mãe dele é professora de Português!”. Falou como se fosse mais um grande defeito do “caminhãozinho”; afinal, era o que faltava para completar a tríade: sem berço, suburbano e filho de professora.
Eu, como professora, confesso que fiquei mexida. Quer dizer que ser professor agora virou motivo de chacota? Tudo bem que tal menina não é um bom parâmetro, mas, se fosse um pouco coerente, ela e seu pai só poderiam falar assim, isto é, fazer galhofa dos professores, se ambos fossem autodidatas e jamais tivessem tido aulas com algum professor.
Aliás, qualquer que fosse a profissão da mãe do garoto – dona de casa, engenheira química, prostituta, empresária, gari –, que problema teria, desde que exercesse eticamente seu ofício, o que isso teria de desmerecedor? Provavelmente, se o pai do menino fosse um advogado milionário e antiético, aí, sim, ele seria considerado alguém com berço.
Ser professor: o que antes era motivo de orgulho agora é usado para desmerecer, desqualificar uma pessoa; pior ainda, o filho dessa pessoa. Claro que tal observação, vinda de uma pessoa com uma mentalidade preconceituosa, pode soar até como elogio para alguns, mas o demérito dessa profissão não deixa de ser grave, seja lá feito por parte de quem for. Não falta muito para dondocas falarem assim de quem é filho de médico.
Do jeito que esses profissionais estão sendo maltratados tanto pelo governo quanto pelos planos de saúde (a mesma dobradinha que desqualifica os profissionais do magistério: escola pública e privada), é fácil imaginar a cena: as dondocas dizendo “ele até é um carinha legal, mas não tem berço, o pai dele é médico!”. Professor, já há algum tempo, é apontado assim pelos integrantes das classes média e alta. Eu sei disso porque quando digo que sou professora algumas pessoas perguntam: “você dá aula em que faculdade?”. Quando digo que dou aula para o ensino médio (professor universitário ainda tem algum status), invariavelmente sinto um olhar de pena. Outro dia um conhecido disse, com pesar: ”eu sei bem como é isso, minha irmã também dá aula em escola”, como que me consolando.
Apesar das dificuldades, dos baixos salários, da tentativa constante de desvalorização da profissão, vamos lá: é uma profissão dinâmica, que nos faz estar sempre em contato com pessoas diferentes, estar sempre renovando nosso conhecimento, nos dá a possibilidade de exercer nossa criatividade, de trocar experiências com os adolescentes e, principalmente, de poder ajudar a melhorar a vida de muitos jovens, abrindo suas mentes para um novo mundo. Um bom professor, mesmo que tenha renda infinitamente menor do que a de um político antiético ou um advogado corrupto, é muita areia para o caminhãozinho de tais profissionais-com-berço.
Quando eu estava em meio a tais reflexões, o ônibus parou. Instantes antes estava curiosa para ver como era a fulana, torcendo para que fosse horrorosa. Bobagem. Resolvi descer antes que ela passasse por mim. Não queira saber quem ela era, olhar sua roupa, sua bolsa, seu cabelo. Seu discurso já era suficiente. Não sei seu nome, nem rosto. Realmente o mundo é injusto, pensei, com uma irresistível ironia que por vezes me acomete: tão injusto que fez com que um ser tão inferior como um suburbano-caminhãozinho-sem-berço-filho-de-professora-de-português desse um fora numa dondoca-zona-sul-com-berço e ainda a fizesse ficar chorando suas mágoas em alto e bom som pelos transportes coletivos. Existe coisa mais sem berço do que isso?
Publicado em 13 de julho de 2010

terça-feira, 23 de fevereiro de 2010

Texto do autor :COMENTÁRIOS SOBRE WEBER: RACIONALIZAÇÃO, ÉTICA PROTESTANTE E CAPITALISMO - Baixe aqui o texto em PDF


O  texto  discute  a tese weberiana do processo de racionalização e analisa como  a concepção de vocação dos puritanos teria favorecido o desenvolvimento do ethos capitalista no Ocidente.

Agosto 2006
Escola de Serviço Social - UFRJ.

Texto do autor: INTRODUÇÃO AS PROPOSTAS METODOLÓGICAS DE ÉMILE DURKHEIM E MAX WEBER .Baixe o texto em PDF

Agosto 2006
Escola de Serviço Social - UFRJ

domingo, 21 de fevereiro de 2010

Texto do autor: CONSTRUÇÕES IDENTITÁRIAS NA DESCONSTRUÇÃO DO ESTADOS NACIONAIS- Baixe o texto em PDF


O texto  comenta, sucintamente, o processo de formação dos Estados Nacionais, emblemático da chamada modernidade, e as construções das identidades étnicas e culturais relacionadas às concepções contemporâneas desses mesmos Estados que hoje enfrentam o fenômeno da desconstrução política, territorial e cultural.
O fenômeno dessa desconstrução é associado à transição para a pós-modernidade historicamente iniciada com a Nova Ordem Mundial por conseqüência da globalização econômica.
Procurei articular a teoria clássica da construção dos Estado Nacional - ponto de partida para a formação da modernidade -, e a transição para a pós-modernidade com as construções identitárias no mundo atual sob a ótica de autores da sociologia e da antropologia.

Texto do autor: O PLANO AGACHE E A “CIDADE -PARTIDA” (2005)


As imagens do referencial livro do jornalista Zuenir Ventura, “Cidade Partida” de 1994, mostram como a cidade do Rio de Janeiro deste início de século está profundamente segregada.
Mais do que um ponto de chegada, a construção literária de Zuenir nos remete a construções retóricas, teóricas e práticas de modelos urbanísticos correspondentes a um projeto de modernidade das elites brasileiras nas cidades:
Desde a reforma de Pereira Passos e passando pelos planos Agache e Doxiadis, a opção foi sempre pela separação, senão pela simples segregação. A cidade civilizou-se e modernizou-se expulsando para os morros e periferia seus cidadãos de segunda classe. O resultado dessa política foi uma cidade partida. (...)” VENTURA, Zuenir. “CidadePartida”. Companhia das Letras, 1994 (p.13).
Na passagem do século XIX para o século XX, o urbanismo, tal como é entendido hoje, estrutura-se de uma maneira científica e, captando várias formas do pensamento, converge para o ato de pensar e fazer a cidade, independente da contestação ou da manutenção da urbe irremediavelmente capitalista.
A implantação do projeto ideológico da República brasileira atravessou as décadas iniciais do século XX e a partir dos anos 1920, com o inicio da industrialização do país, a cidade do Rio de Janeiro, então capital da República, passa por transformações radicais em seu ambiente urbano. A atividade industrial concentrada nos centros urbanos e os empregos criados pelas fábricas estimulam o deslocamento das populações para a cidade.
 É desta década o segundo plano urbanístico da cidade, o Plano Agache que , assim como o plano anterior do Prefeito Pereira Passos, buscava embelezar a cidade instituindo  várias regras para a ocupação ordenada dos espaços, separando áreas para moradia, comércio ou indústrias. Nessa época surgem também os primeiros regulamentos para a construção de prédios (os arranha-céus), pois a inovação tecnológica do concreto armado começava a ser utilizada. O primeiro grande código de obras, que reunia todas as regras para as construções e a ocupação da cidade foi editado a partir deste plano, em 1937. 
Nesse contexto, Alfred Agache aplica todo o seu refinamento de urbanista e explora as limitações da Reforma Pereira Passos que não foi capaz de medir a extensão de suas medidas frente a novos problemas colocados em termos humanísticos, espaciais, políticos e econômicos originários do crescimento da cidade.
O diferencial de Agache residiu na capacidade de observar, pensar e aplicar conceitos a área urbana integrando homens, serviços e máquinas à paisagem, desenvolvendo padrões de embelezamento junto a ajustes na tradição e no conservadorismo embutidos na modernidade da cidade.
Dois aspectos realçam as características conservadoras do Plano Agache. O primeiro está ligado a aplicação rígida nos zoneamentos e pela segregação de segmentos sociais, componentes que esvaziaram seus componentes ideológicos mais explícitos, abrandados pela especificidade tecnicista do urbanismo.
As intervenções urbanas no Centro da cidade exemplificam essas características de Agache. A Cinelândia definiu, efetivamente, a criação de um corredor que marcava o espaço entre a cidade norte e a cidade sul, entre a cidade provincial e a cidade moderna. Um corredor de tensão entre o mundo do trabalho e o mundo da cidade-capital.
O segundo exemplo, respalda o mencionado abrandamento da questão ideológica por conta da construção do Estado Novo varguista, que desenvolve um moralismo urbano simbolizado na nova divisão espacial da cidade, juntamente com um Estado fisicamente visível na monumentalidade dos projetos de Agache.

Portanto, o planejamento urbano de Alfred Agache dividiu a cidade em unidades espaciais apropriadas as manifestações particulares de cada grupo social, adaptando-as aos interesses do Estado e oficializando a separação das classes sociais no espaço urbano.

O Plano deixou algumas referências que terminaram por ser implementadas, como a abertura da Avenida Presidente Vargas, que expulsaria mais gente pobre da área central  ,”partindo” definitivamente  a cidade e  condenando as favelas à erradicação.





 

Considerações sobre o fenomeno urbano.Clique aqui e baixe o texto na íntegra em PDF


Ao longo do século XX, os estudos das cidades e dos fenômenos urbanos motivaram uma admirável e controversa sistematização intelectual. No mundo de hoje , esses estudos requerem uma atualização para posicionar a cidade e os seus efeitos no contexto da pós-modernidade.

Textos do autor: CIDADE E MODERNIDADE (2004) Baixe em PDF :


 CIDADE E MODERNIDADE


Qualquer teorização que se pretenda fazer sobre a implantação da modernidade  na urbe Rio de Janeiro com certeza  fará referências  ao contexto da construção da nação brasileira   na transição do século XIX para o século XX . A partir dos seus pilares básicos: a abolição da escravidão e a implantação da República respectivamente ocorridos em 1888 e 1889 ,  esses fatos  produziram uma seqüência , cronológica e ideologicamente veloz, que deu   o tom ao inicio da  modernidade na cidade do Rio de Janeiro.
O Estado implantado com a República tutelou essa construção modernizadora. Na condição de capital da recém -implantada República, o Rio de Janeiro buscava a visibilidade moderna  a partir do reordenamento urbano, socialestético iniciado com   o “bota-abaixo” do Prefeito Pereira Passos(1902-1906) , nome popular que ficou conhecida  a remodelação da cidade do Rio de Janeiro Para a população carioca pobre, o “bota-abaixo” era isso mesmo: a destruição de suas referências de vida urbana que soçobravam em meio ao nome de uma capital com ares europeus, bonita e moderna:  a “Europa Possível”.
No entanto, no meio dos escombros e da beleza da Reforma Pereira Passos, a questão social,  obscura e marginal, emergia.
O federalismo implantado da República discriminava. As relações do Estado com a sociedade eram distorcidas e, invariavelmente, resolvidas com o uso da força física e da repressão policial. Durante anos a regra foi essa. Foi assim com Canudos, com Contestado, com a Revolta da Armada e durante a Revolta da Vacina.
Em 1904, em plena gestão Pereira Passos, investido pelos poderes extraordinários do então Presidente Rodrigues Alves (1902-1906). , a capital da República da época, era uma cidade com acentuados problemas urbanos e sociais: pobreza, miséria, desemprego, lixo aglomerado nas ruas, ratos e mosquitos transmissores de doenças. Centenas de pessoas morriam como resultado das epidemias de febre amarela e varíola.
Na perspectiva e na pressa da modernização, o governo decidiu tomar medidas drásticas para combater as epidemias.
Para combatê-las, o governo contou com a competência e com a atuação enérgica do médico sanitarista Osvaldo Cruz, diretor da Saúde Pública, que convenceu o presidente Rodrigues Alves a decretar a lei da vacinação obrigatória contra a varíola. Um verdadeiro exército de funcionários da Saúde começou a sair pelas ruas e pelas casas destruindo os focos de ratos e de mosquitos. A população, entretanto, não foi devidamente esclarecida da necessidade da vacina.
Faltava informação e sobrava a desconfiança de malandros, mulatas, biscateiros, negros meninos, prostitutas, capoeiras e operários  quanto aquela República que eles, até ali, assistiam bestializados. Faltava reconhecimento popular e contato com aquela sociedade política que invadia lares na pressa de curar  as mazelas do Rio de Janeiro.
Em 15 anos, a República desceu dos cavalos, saiu do Campo de Sant’ Anna e invadiu o restante do centro do Rio de Janeiro. Eram a higienização e a moralidade como políticas publicas para a superação da questão social.

A população pobre da sociedade reagiu à vacina obrigatória:



Parece propósito firme do governo violentar a população desta capital por todos os meios e modos. Como não bastassem o Código de Torturas e a vacinação obrigatória, entendeu provoca essas arruaças que, há dois dias , trazem em sobressalto o povo”. Correio da Manhã, 12 de novembro de 1904.
Enquanto se perde tempo e se despende energia nessa agitação injustificável a pretexto da vacinação obrigatória, vamos deixando de lado as questões que realmente nos interessam e que afetam vivamente a situação do país. (...)”.
O Paiz, 13 de novembro de 1904·



Exatamente cem anos depois da Revolta Vacina, o Rio de Janeiro, a cidade maravilha, purgatório da beleza e do caos, assiste a um processo intenso de debates sobre o destino dos cortiços do século XXI.
As posturas daqueles que defendem a integração da favela a cidade, chocam-se com as de outros que preferem a solução do “bota-abaixo”.
A questão sanitária, mais exatamente a questão da natalidade, retorna a cena e é colocada como um fator determinante do crescimento desordenado das favelas. É fato que os índices de natalidade nas áreas favelizadas da cidade  ,remontam a índices de 50 anos atrás. De fato, os estatísticos afirmam que o crescimento populacional nas favelas é quatro vezes  superior ao da cidade. Um retrocesso que deve ser creditado a incompetência e ao descaso da realização de políticas públicas, leia-se  a histórica questão social .
A cidade naturalizada não quer e não tolera a favela. O senso-comum quer a remoção assim como quer a camisinha e a laqueadura no controle da natalidade.
Contudo nãooutro modo de reverter tal situação sem entender e superar todos os problemas que existem nas áreas de favelas, do sanitário e demográfico ao policial passando pelo educacional.
O olhar contemporâneo para o mundo é o olhar cada vez mais a partir do local. É visão de cidade completa e integrada, mesmo que, aparente desatino, seja uma cidade demorada.
Nossa modernidade citadina é como foi gestada: autoritária e excludente.  Corre-se o risco de estimarmos a pós-modernidade sem resolvermos, em vastas áreas urbanas no Rio de Janeiro, as demandas da modernidade.
Como considerou José Murilo de Carvalho, “ás tarefas que até agora nos ocuparam, quais sejam, construir o Estado (século XIX) e construir  a nação(século XX) ,deve ser acrescentada,a tarefa cada vez mais importante de construir a sociedade[1]



[1] CARVALHO, José Murilo. “Cidadania na encruzilhada”. In: BIGNOTTO, Newton (org.) Pensar a República. Editora UFMG, 2002 (p.124)
Produto do "Bota-Abaixo" Avenida Central (1906), depois Avenida Rio Branco em 1912.